terça-feira, 21 de julho de 2009

O velho tocador de pífano - Capítulo 1


“Quando cheguei para pegar a faca, a raposa já tinha levado ela na goela”. Com essa frase o velho começava uma anedota. Vendedor de cachaça, tocador de pífano, contador de histórias e mentiroso. Isso mesmo: mentiroso! É assim que a mãe se referia ao velho. Hoje, com um olhar mais distante (e bota distante nisso!) consigo ter uma imagem mais clara: o matuto era uma figura digna de cordel. Aliás, digníssimo! O homem só não assoviava e chupava cana ao mesmo tempo. Diríamos que era um visionário, “um homem à frente de seu tempo”. E isso não por causa das estórias, não. Era muito mais: cada história, cada causo, cada relato, por mais fruto de sua imaginação que fosse, era uma parte, mesmo que pequena, dessa belíssima cultura popular (ainda não entendi por que a academia chama de “cultura subalterna”...). E o homem era forte! Não força física, não. Era forte porque sabia o quanto a linha é tênue entre a morte e o outro lado. Benzedor. Uma vez, quando o neto estava com dor de dente, arrancou uma raiz no pé de uma árvore, colocou no dente da criança, algumas rezas bravas e pronto! A dor se foi. Como é que pode? Vai saber. Poder ele não tinha, dinheiro menos ainda, mas tinha em suas mãos e em seu olhar uma ética do sertanejo. Sim, o sertão ainda não virou mar, mas se virasse, o tocador de pífano já teria previsto.

E tocava pífano que era uma beleza! Os matutos, ao redor do botequim, ficavam igual urubu em cima da carniça pedindo para o velho tocar “aquela da galinha dismiuçada”, “do calango de uma perna só”. E quanto mais música, mais cachaça virando no copo, mais contos de réis em sua caixinha. Entre uma música, uma balela e outra, desce mais cachaça, mais alegria e menos lembranças da vida-cão que levavam. Era como uma troca: cachaça por estórias, cachaça por música. Um serviço de primeira, comparado aos “barzinhos” que a Vila Madalena nunca terá.


Um comentário:

Anônimo disse...

E lá se vão mais de quarenta anos da reza sobre o dente ruim do neto que, hoje, confirma e reconfirma: até hoje nunca mais soube o que é dor de dente. Nem mesmo quando passou por
mentiroso na frente de um dentista preocupado com a "dor" que o dente estragado devia estar provocando, carecendo reparo, com "o nervo exposto", segundo o dentista.
Obs. Depoimento do tal neto pra quem quiser ouvir.