quinta-feira, 26 de novembro de 2009

A modelo


O mundo fashion também pega busão. Outro dia, andando no coletivo, me deparei com uma figura um tanto, digamos, caricata: uma jovem modelo terrivelmente perdida sem saber o local de seu casting. Podemos dizer que ela destoava do ambiente barulhento e tulmutuado do transporte de massas. Com seu book em punhos, sua maquiagem para o dia e seus finíssimos saltinhos de cristal, ia a modelete a caminho de mais uma prova de roupas. Imaginei, pelas suas caras e bocas, o quanto deveria ser complicado lidar com um ser desse nipe: o fotógrafo tentando o melhor ângulo enquanto a estrela da vez aproveita seus minutos de vaidade para uma propaganda das lojas "ZYZ". Não devia ter mais que dezesseis anos, mas já predominava a garota fantástica que ela buscava em seu intimo.

Toca o telefone, voz de frescura:

- Aloooô, Pri? Tô chegando, é que me atrasei com a maquiagem...

Engraçado é que quando ela chegar em seu destino, com certeza, irão fazer novamente sua maquiagem conforme manda o figurino. Mas elas estão lá, todas "bonitinhas" e "cheirosinhas". Como diria a legítima música popular: "cada um no seu quadrado".
Acho chato essa assimetria de rostos. Olhei para a menininha (não sei aonde ela queria chegar, mas seus 1,60 m não eram disfarçados pelo saltinho de cristal) e notei o quanto seria árdua sua empreitada de ser famosa. Mas um inshigt me atingiu como um raio: quando ela chegar aos cinquentinha, lembrará com tristeza (igual a Liliam Cabral na novela do Maneco-de-bem-com-a-vida) os áureos tempos de modelete, e talvez, perceba que mais interessante seria canelar um papel de coadjunvante-rostinho-rosado nas noveletas da Record (ou, se der sorte, da Grande-Mãe-Globo-de-Televisão) do que se aventurar no famigerado mundo da moda. Como diria Jesus: "dai a César o que é de César" e que deus tenha piedade de todos nós.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

O muro ou a liberdade televisionada

É curioso o modo como estão se dando as "comemorações" da Queda do Muro de Berlim, que hoje, 9 de novembro, completa vinte anos que o paredão de concreto construído pela RDA ruíu como que nem dominó. Vendo os notíciários, pelo menos aqui no Brasil, deparei-me com algumas frases de efeito dos jornalistas:

"Há 20 anos atrás caia o muro da intolerância para dar espaço para a liberdade" - Bom dia Brasil, Globo.

"O Muro simboliza o fim do terror e o começo de uma nova era" - Record Notícias, Record.

"A construção de um sonho de liberdade com a queda da barreira comunista" - Jornal do SBT, SBT.

"O Muro de Berlim caiu e marcou o fim do século XX" - Jornal da Cultura, TV Cultura.

Dentre essas e outras, fiquei com meus botões discutindo, martelando a cabeça com esses marcos, essas frases, esses gestos que denotam um pepino ruim de descascar. Que pepino é esse?
O pepino é uma extrema tendência de sinalizar aos leitores o único lado da história: triunfo do capitalismo sobre o socialismo, ou no que quiserem chamar esses sistemas de governo. Curioso também é a transformação de um "comunista comedor de criancinhas", segundo a propaganda estadunidense da Guerra Fria, em herói: Gorbachov. O homem da mancha preta na careca, hoje, transformou-se no defensor da "liberdade" e do diálogo. Mais curioso ainda é o modo como a mídia está pintando o quadro da Guerra Fria: segundo eles, ela só terminou por causa do fim do "comunismo" (como se para haver conflitos, não houvesse necessidade de ter dois lados brigando por interesses opostos).
É aí que o buraco é mais embaixo: comemora-se. A mídia comemora o triunfo da liberdade (ou do país que nos USA?) como sinônimo de paz e harmonia. Mais o quê? Vamos aos fatos:

1 - Ninguém tá falando porra nenhuma sobre o murão que Israel está construíndo em torno da Cisjordânia.

2 - Nem se fala do muro, econômico, imposto à Cuba pelos EUA até agora.

3 - Muito menos queremos saber da porrada de Afegãos que morrem todos os dias com a ocupação estadunidense naquele país, e Obama tá mandando mais gente pra lá. Se isso não for um muro, eu preciso rever meus conceitos de construção civil.

4 - Você acha que nos preocupamos com barreiras sociais que impomos nos semáforos das cidades aos meninos-querôs que tentam limpar o seu parabrisa?

5 - E o que falar dos bloqueios que existem nas relações humanas numa "modernidade tardia" tão egoísta e cheia de dedos? E não se fala mais nisso.

Poderia escrever alguns bons 95 tópicos, que nem o Lutero, mas isso aqui é um blog e, como diria os especialistas em comunicação, "menos é mais".
O que intriga não é rememorar um episódio que foi possível graças à vontade de milhares de pessoas que comemoravam como que num ano novo a derrubada de um muro que separava não só as pessoas, mas modos de vida, não. E muito menos que esse processo de unificação das Alemanhas tenha sido desencadeado por um porta-voz do partido comunista que estava de férias e, numa coletiva, em vez de anunciar a liberação gradual de vistos à Alemanha Ocidental, acabou, no final da entrevista, adiantando para os jornalistas que as mudanças iriam ocorrer imediatamente. Não, nada disso intriga.
Mas intriga o modo como a mídia de modo geral, e uma mídia comprometida com o sistema de mercado voraz, coloca ao leitor, ainda mais para os que não viram o Pedro Biela atrás do muro com sua gravatinha fininha anunciando no Fantástico a queda da muralha, a representação dessa parede de concreto. Ela representa mais. Representa a solidificação do conceito de liberdade com liberdade de consumo, liberdade de competir, liberdade de se comer. Podem até me chamar de comunista enrustido, coisa que abomino, mas não poderão me chamar de tapado. Como diria uma propaganda de um símbolo do capitalismo da Guerra Fria, as calças Levis: "A liberdade é uma calça azul desbotada".

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Borracha

Borracha era pequeno, mirrado, com cara de infeliz. Parecia infeliz, mas era só um disfarce. Começou a andar pelas ruas como quem não quer nada, olhando, inferindo, metendo o bedelho. Acontecia qualquer coisa na rua do pilintra e lá tava ele: de assassinato de traficante a mendigo que morre de frio, briga de casais até o mais discreto escarro do motorista de caminhão. Tudo era de seu conhecimento. Aprendera com as pauladas da vida a observar. Ser espectador dessa coisa toda que é o cotidiano.
Borracha não tinha amigos. Quer dizer: tinha, mas não eram "amigos". Ele se relacionava com o outro de um jeito muito peculiar: dava uma passada de olho de baixo a riba e sabia em quem podia confiar. No boeiro, a coisa fica mais preta quando se está sozinho. Juntos, ou em uma encardida matilha, conseguem se previnirem contra as porradas dos meganhas, o frio de fudê nos meses de julho e a investida dos pedófilos que não marcam toca. Viver é fácil, a merda é sobreviver.
Borracha passava os seus dias caminhando pelo centro. Uma vez até conseguiu um trabalho, mas não deu muito certo. O dono de um lava-rápido havia lhe oferecido um conto por cada carro lavado. Foi na segunda, na terça, na quarta faltou e na quinta nem passava mais pela sua cabeça de voltar até lá: "ganho mais não fazendo nada".
Borracha num belo dia encontrou sua sorte: havia arranhado o carro de um delegado por causa que o mesmo lhe recusara um trocado. Não teve outra, na noite seguinte uma renca de viaturas baixaram na rua do pilintra. Tinha mais luizinhas azuis e vermelhas do que a escuridão da bocada. Deram geral, queimaram cobertor, cobriram de porrada muleque marrento: "cadê o pequenininho? Fala porra!". Nem um piu. Procurou, procurou até encontrar o Borracha escondido no bueiro: "Achei!", anunciou o cabo Ferrazo. Levantaram a boca-de-lobo e tiraram o muleque num puxão só. Os carros foram embora, as sirenes, a rua escureceu novamente.
Na manhã seguinte, o comércio abria para mais um dia de compras. Os moleques, doloridos, levantavam com sofreguidão aos trancos dos empregados enxotando-os com suas vassouras. Era um dia qualquer, como todos os outros dias quaisquer.
Borracha nesse dia não acordou, não perambulou pela rua, não pediu dinheiro, muito menos observou o que acontecia em todo puto-dia. Como que um rabisco, apagaram-o do cenário da cidade.