sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A comunidade

A meio metro de distância, tranco a porta e atrás de mim surge a figura esguia da zeladora:

- Bom dia.
- Bom dia...
- Eu vou ser franca contigo, pois sou assim desde que nasci: você vai sair desse condomínio hoje!
- ? E porque eu devo sair daqui? Não entendi...
- Ok, mais franqueza: você vai sair desse prédio, nem que eu chame a polícia!
- Calma aí Dona Zeladora, não entendendo o motivo, não paguei a taxa de condomínio?
- Pagou. Mas isso não importa. Você sai hoje!

Saiu, bateu a porta e ainda trancou as três fechaduras. Caralho. O que é que tá acontecendo? Sempre soube que a zeladora não batia com meu santo, mas expulsar um morador do prédio já era abuso. Voltei, respirei fundo e toquei a campainha. Sem sucesso. Era como se a velhinha estivesse dormindo seu sono de diazepam. Fazer o quê? Resolvo depois do trabalho.
Passou o dia e já nem passava pela minha cabeça o disparate da Zeladora. No final do dia, voltando para casa me deparo com uma massa de populares que tomava conta da rua. Empunhando pedaços de pau e tochas improvisadas, a massa humana queria sangue. Algum mais atento ao me ver alardeou o povo:

- Olha ele lá! Vamo mata esse filho da puta!
- Mata! Esfola! Hoje ele não entra nesse prédio!
- Ele não serve para nossa comunidade!

Sai correndo que nem galinha com medo de virar assado de domingo. A medida que corria, mais gente ia compondo a horda ensandecida. Pulei quintal alheio, fugi de cachorro, rasguei a roupa em caco de vidro em cima de muro e a massa ia crescendo, cada vez mais odiosa. Não havia remédio: deveria enfrentar aqueles doidos. Parei a alguns metros de distância, acenei com a mão pedindo clemência quando, a última coisa que me lembro, uma tijolada me acerta bem no meio dos cornos. Depois disso, não me lembro mais de nada. É essa a lembrança que tenho de minha morte. Quando se morre, a coisa toda fica meio confusa. Mas uma última imagem que tenho, aquele momento da expiação, foi de Dona Zeladora em meio a multidão comandando o auto de purificação, repetindo, repetindo que nem bolacha riscada: ele não serve para nossa comunidade.