segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Borracha

Borracha era pequeno, mirrado, com cara de infeliz. Parecia infeliz, mas era só um disfarce. Começou a andar pelas ruas como quem não quer nada, olhando, inferindo, metendo o bedelho. Acontecia qualquer coisa na rua do pilintra e lá tava ele: de assassinato de traficante a mendigo que morre de frio, briga de casais até o mais discreto escarro do motorista de caminhão. Tudo era de seu conhecimento. Aprendera com as pauladas da vida a observar. Ser espectador dessa coisa toda que é o cotidiano.
Borracha não tinha amigos. Quer dizer: tinha, mas não eram "amigos". Ele se relacionava com o outro de um jeito muito peculiar: dava uma passada de olho de baixo a riba e sabia em quem podia confiar. No boeiro, a coisa fica mais preta quando se está sozinho. Juntos, ou em uma encardida matilha, conseguem se previnirem contra as porradas dos meganhas, o frio de fudê nos meses de julho e a investida dos pedófilos que não marcam toca. Viver é fácil, a merda é sobreviver.
Borracha passava os seus dias caminhando pelo centro. Uma vez até conseguiu um trabalho, mas não deu muito certo. O dono de um lava-rápido havia lhe oferecido um conto por cada carro lavado. Foi na segunda, na terça, na quarta faltou e na quinta nem passava mais pela sua cabeça de voltar até lá: "ganho mais não fazendo nada".
Borracha num belo dia encontrou sua sorte: havia arranhado o carro de um delegado por causa que o mesmo lhe recusara um trocado. Não teve outra, na noite seguinte uma renca de viaturas baixaram na rua do pilintra. Tinha mais luizinhas azuis e vermelhas do que a escuridão da bocada. Deram geral, queimaram cobertor, cobriram de porrada muleque marrento: "cadê o pequenininho? Fala porra!". Nem um piu. Procurou, procurou até encontrar o Borracha escondido no bueiro: "Achei!", anunciou o cabo Ferrazo. Levantaram a boca-de-lobo e tiraram o muleque num puxão só. Os carros foram embora, as sirenes, a rua escureceu novamente.
Na manhã seguinte, o comércio abria para mais um dia de compras. Os moleques, doloridos, levantavam com sofreguidão aos trancos dos empregados enxotando-os com suas vassouras. Era um dia qualquer, como todos os outros dias quaisquer.
Borracha nesse dia não acordou, não perambulou pela rua, não pediu dinheiro, muito menos observou o que acontecia em todo puto-dia. Como que um rabisco, apagaram-o do cenário da cidade.

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